Olho simplesmente para trás.
Há dias que acordo desejando olhar
para trás.
Querendo trazer ao presente o palco
da fantasia,
esse mesmo palco com um buraco de
desgaste
de tanto ter sido feliz nele.
Querendo amplificar a minha voz no
espírito,
de modo a ouvir-me, de modo a ouvir a
sinfonia,
orgânica, com que as sensações se
revelam em mim.
A vida é estranha e incrivelmente
simples.
É uma mera sucessão de acontecimentos
que fluem com o tempo,
inexoravelmente
e que desvanecem com ele até à morte.
Não existe nada que impeça a diluição
do passado,
que troque o tempo, que o engane,
que o martirize ao ponto de deixar de
ser tempo,
de passar a ser um corpo moldado
pelas exigências inúmeras desta vida
cansada.
Existe somente a memória,
armário cerebral indescritivelmente
engendrado,
com gavetas sem fundo, de madeira
consumida
e a não ser mais madeira pelos
desgostos sofridos.
A memória a ser uma máquina avançada,
a ser o âmago que faz de nós humanos
lúcidos.
Não deveríamos querer lembrar de
tudo,
nem sequer reter tudo.
Existe uma seleção natural que se
ergue,
altruísta, dirigindo o passado.
Que descarta imagens, avivando
outras,
que torna invisuais as lembranças já
insípidas.
Olho para trás não por exigência
afetiva
ou por abundante nostalgia.
Olho para lembrar uma vez mais
que não sou só presente, que o meu
corpo,
este corpo de devaneios
descontrolados,
são estratos acumulados com o tempo,
renovados com o medo de os não ter
mais,
polidos com a lembrança que deles
tenho.
Tudo são memórias.
Não carregas uma ida à praia às
costas,
Não sustentas no colo, como uma
criança tua,
a quantidade de saudações que te
dirigiram.
Nem a ausência delas sentes nos
ombros
Como pesos mortos a moldarem um
corcunda.
Tudo se manifesta interiormente,
numa amálgama de memórias
perseverantes,
em movimentos de corpo saudáveis
que são a vida toda a não retaliar a
alegria momentânea.
Octávio Carvalho